Mitos
e polêmicas sobre a crise
da carne brasileira
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Prof Marcus Cerqueira |
A Universidade
Católica de Brasília conversou com dois especialistas da área de Nutrição e Biomedicina para elucidar
as questões envolvendo as irregularidades das empresas investigadas pela
Operação Carne Fraca deflagrada pela Polícia Federal. O professor Samuel Dias
Junior, da área de Análise de Alimentos, e o professor Marcus Vinicius
Vasconcelos Cerqueira, da área de Tecnologia e Higiene dos Alimentos e
Microbiologia, destacaram os principais mitos e verdades sobre o assunto, como
a falta de evidências a respeito da análise laboratorial dos alimentos e a
equivocada informação de que a denúncia de produtos adulterados e fora do prazo
de validade envolvia carnes in natura. Para o professor Samuel, “se as carnes estivessem
contaminadas, já teríamos surtos de doenças gastrointestinais”. Outro ponto que
essa grave crise acarreta é a quebra de confiança do consumidor, segundo o professor
Marcos Cerqueira. A operação, que percorreu sete estados, pretende combater a
venda ilegal de carnes no país e já denunciou ao menos 30 empresas produtoras
de carne no Brasil.
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Prof Samuel Dias |
1. O que a operação
Carne Fraca descobriu em relação ao uso de produtos químicos em alimentos?
Prof. Samuel Dias – A
Polícia Federal está há dois anos investigando essas supostas fraudes. Eles
detectaram, por meio de conversa entre fiscais do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e supostos frigoríficos, que salsichas de peru
continham outros materiais, como farinha e fécula de mandioca. Ao longo desse
período, a PF está interceptando conversas de áudio por telefone e documentos
dos fiscais agropecuários e frigoríficos. Por enquanto, a PF ainda não fez análise
de nenhum alimento. As únicas provas que a PF apresentou são conversas e
documentos fraudados. Não foi feita nenhuma avaliação laboratorial e essa é uma
questão a ser levantada.
Prof.Marcus Cerqueira - Utilizar produtos fora do prazo de validade é
uma fraude, mesmo que eles estejam com sabor e aroma aparentemente normais. A
situação fica mais complicada, principalmente, quando esse produto é resfriado
ou congelado. Há microrganismos que produzem toxinas prejudiciais à saúde
humana e que mesmo após o processo de cocção não são eliminadas. Há
contaminações que não são aparentes, o que se torna um risco para crianças e
pessoas com baixa imunidade.
2.
Então, a
denúncia não envolve carnes in natura?
Prof. Samuel Dias – Não. Mas
da forma como a PF divulgou a informação para a mídia, ficou aparente que se
tratava de todas as carnes, o que não é verdade. O SIF (Serviço de Inspeção
Federal), de responsabilidade do MAPA, tem
cadastrado mais de 4 mil frigoríficos e, neste universo, os frigoríficos
informados foram cerca de 30, dos quais apenas três foram interditados. Dessa
forma, na visão da sociedade, todos os frigoríficos estão cometendo
irregularidades, o que é falso. É proibido usar aditivos em carnes cruas, ela
deve ser congelada.
3.
Qual
seria o procedimento correto para a análise desses produtos?
Prof. Samuel Dias – Nesta
semana, o MAPA montou um grupo de trabalho emergencial
para fiscalizar esses locais que foram autuados na denúncia. Somente com essas
análises será possível comprovar se houve realmente os delitos ou não. Foi
denunciada a fraude de documentos, porém as questões mais específicas foram o
uso de papelão, ácido ascórbico e ácido sórbico na carne para mascarar a aparência
e o cheiro ruim da carne vencida.
4.
Você
acredita que havia papelão na carne?
Prof. Samuel Dias – Não. Foi
um equívoco na divulgação das informações, talvez, pelo desconhecimento
técnico. O produto apontado pela PF era uma Carne Mecanicamente Separada (CMS),
que é desossada mecanicamente e levada para um frigorífico. Nesse local, as
carnes são ensacadas e, conforme a legislação, devem ser colocadas em
recipientes plásticos, onde tomam forma, para, em seguida, serem congeladas e
empilhadas. Durante a gravação das conversas entende-se que o funcionário
colocaria as carnes em caixas de papelão, o que também é proibido, pois pode acarretar
uma contaminação cruzada de microrganismos.
Prof. Marcus Cerqueira – O papelão, assim como outros materiais reciclados, não pode entrar
nem na área de produção de alimentos, pois a legislação impede produto
reciclado em contato direto com alimentos, com exceção de alumínio e vidro. Não
há vantagem econômica, técnica e nem nutricional nisso. A pessoa investigada
relatava que não poderia entrar com caixas de papelão numa área proibida, por
exemplo, na linha de montagem, ou colocar o alimento em contato direto com o
papelão. Além de microrganismos, o papelão tem contaminantes químicos
provenientes da reciclagem.
5.
Muitos
estão condenando a utilização de cabeça de porco na produção. É permitido? E o
caso da Salmonella na carne?
Prof. Samuel Dias – Sim,
inclusive em todo o mundo é utilizado. Na denúncia deu a sensação de que é
proibido, mas não é. Pode-se usar em produtos de qualidade inferior, numa
porcentagem determinada, como adição à linguiça. Existem várias espécies de
Salmonella na carne, a exemplo de carnes de frango que têm microrganismos
próprios, que fazem mal à saúde humana e outras não. Por isso, essas carnes não
podem ser consumidas in natura, mas devem ser cozinhas ou fritas.
Prof. Marcus Cerqueira - É um problema de fraude nos alimentos e uso de produtos inadequados
para consumo, com prejuízo de saúde e também econômico. Quando você consome um
produto, como a linguiça suína, que é feita com pernil de porco, não há nenhum mal
à saúde. No entanto, quando se adiciona outros componentes durante o preparo, a
cabeça do porco, por exemplo, trata-se de uma fraude econômica, pois o
consumidor pagará mais caro por um produto que não possui a qualidade que ele
espera, ou seja, um produto de péssima qualidade.
6.
O que
exatamente o ácido ascórbico e sórbico fazem na carne processada?
Prof. Samuel Dias – São
coisas distintas. A carne crua é a mais perecível e deve ser mantida em
temperatura refrigerada a 7 °C, de 3 a 5 dias, depois disso, deve ser congelada
e terá prazo de validade indeterminado. Aditivos e conservantes só podem ser
utilizados em carnes processadas, como enlatados, linguiças, presuntos e salames.
O ácido ascórbico é vitamina C, com função antioxidante, e não é uma substância
cancerígena. Não há limite na legislação brasileira sobre as taxas aceitáveis
desse ácido. A carne, quando se deteriora, tem a hemoglobina de cor saudável e,
em contato com o oxigênio, ela fica com a cor marrom. Ao adicionar o ácido,
você reverte esse processo e devolve a cor para a carne, porém, não é permitido
utilizar esse produto em carnes já deterioradas para “mascará-las”, pois ele
não as descontaminará. Já o ácido sórbico é um importante conservante de
alimentos, pois tem a função de evitar mofo e é também antifúngico. Ele não tem
ação contra bactérias e é utilizado para evitar e controlar o crescimento de
microrganismos, mas existem limites. Enfim, mesmo se tivéssemos carnes
contaminadas e estragadas e grupos de pessoas as tivesse consumido, já teríamos
surtos de doenças gastrointestinais, o que ainda não foi notificado no Brasil.
Prof. Marcus Cerqueira – É um grande problema de fraude econômica, pois foi encontrado
excesso de sódio também para eliminar a contaminação. O sódio retira a maior
umidade do produto. O impacto econômico é ter um produto com menor custo de
produção e venda pelo mesmo preço. A grande contradição é que essa substância
em carnes estragadas não altera sua aparência, só elimina o crescimento
microbiano.
7.
A
população pode ficar tranquila? Existem critérios e legislações específicas que
regulam a atividade de frigoríficos no mercado?
Prof.Samuel Dias – A
indústria de carnes é respeitada e consolidada no mundo, como União Europeia e
China. Existem critérios, desde a produção, com etapas controladas por regras,
para carnes processadas e in natura, e as substâncias e aditivos são
adicionados em níveis seguros. Para exportar, é necessário seguir critérios do
governo, da empresa e dos agentes que fornecem critérios para exportação do
produto. Os consumidores podem verificar algumas medidas nos produtos que são
vendidos com código do SIF, que é o selo que comprova que essas marcas passaram
por fiscalização. Devemos também desconfiar de produtos vendidos com preço
inferior ao do mercado tradicional.
Prof. Marcus Cerqueira – O Brasil é um dos maiores fornecedores de carne no mundo em
mercados exigentes e fechados, como o Japão. Nossa legislação é rigorosa e o
Brasil é signatário de cartas de comércio no mundo inteiro, que seguem
orientações padronizadas para produção de alimentos. Não vamos parar de
comer carne, pois o mercado é certificado. Cada alimento tem uma legislação específica
para uso de conservantes em produtos ultra processados, que geram mais tempo de
prateleira do produto. O que temos agora, é um problema de confiança rompida na
área de alimentos. Você compra pela confiança no fornecedor e come confiando no
estabelecimento. Quanto tempo vai demorar para reaquecer o setor? Quanto tempo
o Brasil levou para ganhar esta confiança? É preciso entender se a crise é algo
que afeta toda a cadeia de produção ou se são casos pontuais.
Fonte: Imprensa UCB