Cotas raciais para
concursos públicos revelam divergência de critérios e decisões
Os professores da Universidade
Católica de Brasília analisaram o debate no STF sobre a validade de
reserva de 20% de vagas para negros no serviço público federal. Após
terem sido reprovados pela banca
examinadora, muitos candidatos sofrem com as consequência da eliminação
do certame, sem qualquer fundamentação e, muitas vezes, de forma
injusta.
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A
soberania da banca em suas decisões é um consenso no Poder Judiciário
brasileiro, que não leva em consideração provas documentais ou critérios
fenótipos aparentes.
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Cor
da pele, tipo de cabelo, traços ou feições, como o formato da boca ou
do nariz. Quais são os critérios que levam uma pessoa a ser considerada
com fenótipo de negra, de cor preta ou parda? A questão está sendo
discutida novamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde o início
do mês de maio, em favor da constitucionalidade da reserva aos negros de
20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de
cargos efetivos e empregos no âmbito da administração pública direta e
indireta. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), a partir do censo de 1991, a classificação de pessoas
incluiu "cor ou raça" e definiu cinco categorias: branco, pardo, preto,
amarelo e indígena. Portanto, a raça negra inclui pessoas de cor preta
ou parda, que compreende ainda mulatos, caboclos, cafuzos, mamelucos e
mestiços. Para a maioria dos ministros, a Lei Federal 12.990/2014, a
chamada Lei de Cotas, que reserva vagas àqueles que se autodeclararem
“pretos ou pardos” no ato da inscrição no concurso público, é
constitucional.
Um
dos temas em debate é a utilização legítima, além da autodeclaração, de
critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a
dignidade da pessoa humana e garantidos os direitos ao contraditório e à
ampla defesa. No entanto, muitos candidatos que passaram em
concursos têm sido reprovados pela banca examinadora e automaticamente
excluídos do certame, como forma de penalidade, sem qualquer
fundamentação. Para o professor Weslei Machado, do curso de Direito da
Universidade Católica de Brasília (UCB), o STF está diante de uma
oportunidade de definir critérios de avaliação e rever possibilidades de
contestações caso o candidato se sinta lesado. Ele defende uma
lógica na avaliação das bancas examinadoras. “Como não há, no âmbito
federal, uma lei geral dos concursos, cada banca adota um procedimento
diferente, o que resulta em incertezas, inseguranças e prejuízos aos
direitos individuais”.
O
debate foi proposto pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) com o
objetivo de sanar dúvidas sobre a aplicação da lei, que vinha sendo
questionada em outras instâncias judiciais. Segundo o professor Weslei
Machado, a ação leva em consideração a isonomia no concurso público. “O
sistema de cotas foi um meio utilizado para o Estado aplicar a isonomia
material, ou seja, tratar os desiguais de forma desigual na medida de
suas desigualdades. Naturalmente, no Brasil, existe um abismo social,
que faz com que as pessoas negras tenham menos acesso a cargos públicos e
a uma educação de qualidade”, evidencia.
A
equidade implica isonomia ao tratar de forma desigual aquelas pessoas
que vivem em condição de desigualdade, como descreve a Constituição
Federal. É o que aponta a professora Isabel Clavelin, do curso de
Comunicação Social da UCB: “As cotas possibilitam a remoção de
obstáculos objetivos, concretos e sistemáticos aos negros. Em
contrapartida, representam a ruptura de privilégios para as pessoas
brancas, as quais têm obtido vantagens do racismo e da discriminação
racial, ao longo de suas trajetórias de vida, sobretudo, no mundo do
trabalho, seja em relação a postos, cargos de decisão e prestígio,
remuneração e estabilidade”.
Divergência de critérios para avaliação e decisões
O
STF examina se os órgãos públicos podem verificar eventuais falsas
declarações de candidatos cotistas, que serão punidos com a eliminação
ou demissão, se for constatada a fraude após sua admissão no serviço
público. O professor Weslei sugere uma alteração da legislação para, ao
invés de excluir o candidato do concurso, permitir que ele participe do
certame pela ampla concorrência. “Muitas vezes, o candidato é
penalizado, mas se considera negro. Esta forma punitiva é muito severa”,
revelou.
Morena de cabelos cacheados, Janaína Ribeiro Nunes Soares, 37 anos,
foi aprovada em 2016 no processo seletivo da Fundação de Previdência
Complementar do Servidor Público Federal do Poder Judiciário (Funpresp -
Exe), para o cargo de Analista Administrativo, nas vagas destinadas às
cotas. Depois de passar pela entrevista pessoal, foi reprovada.
Entrou com recurso e foi indeferido, sob a alegação de que ela não se
enquadrava nos critérios fenótipos da banca avaliadora, o Centro
Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos
(Cebraspe – Cespe). Mesmo com todas as características de uma pessoa
negra, presentes em toda a sua vida, a candidata recorreu, desta vez, na
justiça trabalhista. Recentemente, a decisão judicial indicou: Janaína
definitivamente não é de cor preta ou parda.
Os
três anos dedicados ao estudo e a perda de uma vaga no serviço público
deixaram marcas de frustração em sua vida. “Passei a vida inteira sendo
negra, mas, agora, preciso encarar que as pessoas me julgam diferente.
Trabalho na iniciativa privada ganhando menos da metade do que meus
esforços intelectuais poderiam ter me proporcionado”. Ela alega que,
mesmo fora das cotas, estaria dentro da classificação. “Bastava eu não
ter comparecido à entrevista que, pela ampla concorrência, já teria sido
nomeada pela minha nota. Ao invés disso, fui punida com a eliminação do
concurso, como se eu fosse uma criminosa, o que não é verdade. Nunca
tive dúvidas sobre a minha cor. Na minha família todos têm a mesma cor.
Uma banca examinadora tem o poder de decidir seu futuro e mudar a sua
história em questão de minutos. É humilhante!”, recorda-se.
De
família humilde, Janaína sempre acreditou na educação como caminho para
mudar sua realidade, mas sua crença na lei colocou tudo a perder: “Foi o
primeiro curso que fiz pelas cotas e a lei é clara para quem se declara
preto ou pardo. Estava desempregada, por isso, estava focada em estudar
para mudar de vida”. A administradora conta ainda que sofreu com
depressão, problemas familiares e financeiros. “Fiquei deprimida, pois
passava por dificuldades financeiras. Por um ano inteiro, estudei 16
horas por dia. Eu me olhava no espelho para tentar entender como posso
ter fraudado alguma coisa”, refletiu.
Janaína
Ribeiro atribui a reprovação ao fato de não possuir a chamada
“consciência negra” e diz que a lei não tem nenhuma aplicação prática.
“A Lei é mais um discurso do que uma realidade. Nunca fui branca para
ter privilégios, como bons colégios e empregos, e, agora, não sou negra
nem branca, apenas uma excluída. Nasci no interior da Bahia onde todos
são negros. Sou a primeira da família a ter nível superior e não há
ninguém concursado, pois não têm estudo. Apesar da reprovação da banca, a
minha cor permanece a mesma. Estou fazendo tratamento psicológico, mas
estou convicta da minha cor”.
Soberania da banca
O professor Weslei esclarece que não há limite de tempo para recorrer na justiça, e o prazo independe da validade do concurso. No entanto, a soberania da banca examinadora em suas decisões é um consenso no Poder Judiciário brasileiro. “Em
regra, se o parecer não for flagrantemente ilegal, ou seja, afronte a
lei, o mérito do ato é mantido. Isso porque o judiciário não pode
substituir a Administração Pública. A banca possui especialistas que
auxiliam na execução de suas tarefas, para avaliar a condição de negros
em entrevistas, e o judiciário não possui essas ferramentas técnicas”.
“Caso
reconhecido um erro da Administração Pública, o Poder Judiciário
determina a reintegração desse candidato dentro das vagas para cotas. Se
alguém tiver ocupado a vaga e o prazo da estabilidade tiver passado,
essa pessoa é colocada em disponibilidade e o candidato negro ingressa
na vaga de direito. Por meio de um pedido liminar de antecipação de
tutela, é possível reservar a vaga até que o mérito do processo seja
julgado, para não haver prejuízos. Outra hipótese é quem estiver na vaga
perder o cargo ou ser colocado em disponibilidade”, explicou o
especialista em direito constitucional.
Discriminação racial em debate
Em
caso de ações discriminatórias aos candidatos que ingressarem pelas
cotas, o Estatuto dos Servidores Públicos Federais, criado pela Lei
8.112 de 1990, prevê sanções de infrações ético-disciplinares. “Quem
discrimina um colega no local de trabalho está cometendo uma infração
disciplinar. Em nenhuma hipótese podemos admitir discriminação dentro da
Administração Pública e nem mesmo fora dela. Ainda é preciso haver uma
mudança de cultura. Quem ingressa pelas cotas não está recebendo um
privilégio, mas estão participando de uma ação afirmativa para correção
de problemas sociais vivenciados no Brasil”, explicou o professor Weslei
Machado.
O
artigo 4º da Lei de Cotas trata dos critérios de nomeação dos
candidatos cotistas aprovados em todos os momentos da vida funcional dos
servidores públicos. Clavelin acredita que a Lei de Cotas é um
“ajuste de contas” para o fim do racismo e pela promoção da equidade
racial no Brasil, que impedem o ingresso de pessoas negras no mundo do
trabalho e assegura a diversidade nos quadros do funcionalismo público
federal. Para a professora Isabel Clavelin, “as pessoas que
ingressam em espaços sem diversidade racial têm sido alvo de uma série
de intimidações, desqualificações e até mesmo perseguições de cunho
racista, que visam desestabilizar e inviabilizar a permanência de negras
e negros. Essas pessoas passam por processos seletivos rigorosos e
detêm a formação necessária para a execução de suas atividades no
funcionalismo público”.
A
pesquisadora em Comunicação aponta como obstáculos a falta de
padronização de monitoramento e de transparência das informações por
parte das organizadoras dos concursos, do processo de inscrição às fases
classificatórias e eliminatórias. “São fartos os questionamentos e
impugnações com o propósito de impedir a aplicação efetiva da Lei
12.990/2014, alegando inconstitucionalidade da norma. Isso faz com que
negras e negros que são discriminados pelo fenótipo, tenham de travar
verdadeiras batalhas jurídicas para afirmar um direito reiterado pela
própria Lei”, destacou.
CRÉDITO FOTO: Faiara Assis
Fonte:Imprensa UCB