sexta-feira, 3 de abril de 2020

O que os povos indígenas podem ensinar ao mundo pós-coronavírus

Covid-19
Por Nathan Fernandes (@nathanef)

Ver as imagensPara os representantes indígenas, é o vínculo com a “memória ancestral” que garante aos povos nativos uma consciência plena de preservação, por exemplo, num país que queima seu patrimônio natural e se habitua a recordes de desmatamento (CARL DE SOUZA/AFP via Getty Images)
“Para nós, indígenas, isso é uma repetição da história. A única diferença é que nós não estamos sozinhos desta vez”, afirma, em um vídeo no YouTube, o xamã Vernon Foster, ao falar sobre a pandemia do novo coronavírus. Para o nativo norte-americano da nação Klamath/Modoc, que estudou psicologia e ciências sociais na Universidade de Minnesota, a necessidade de mudar hábitos e absorver novos costumes frente a uma ameaça desconhecida só é novidade para quem nunca teve suas tradições atropeladas. 
No Brasil, saberes ancestrais que já habitavam o território antes da chegada dos europeus são frequentemente menosprezados. Em 2018, por exemplo, logo após ser eleito, o presidente Jair Bolsonaro desumanizou indígenas isolados, ao declarar: “Na Bolívia, temos um índio que é presidente. Por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas, como se fossem animais em zoológicos?". Em 2019, em uma live, afirmou que o cacique kayapó Raoni Metuktire, um dos maiores nomes do ambientalismo mundial, forte candidato ao Nobel da Paz, em 2020, estaria sendo cooptado por líderes estrangeiros para falar mal da política ambiental brasileira. Já em janeiro, durante uma de suas lives semanais no Facebook, o governante afirmou que “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”, deixando escapar seu sentimento de superioridade moral, e defendendo a não demarcação de terras.


Mas, para muitos representantes de etnias indígenas, o modelo acelerado de produção atual — que flerta com o abismo e ameaça levar a sociedade para o buraco em momentos de crise como este — exige uma mudança urgente de direcionamento. Uma das alternativas é uma abertura maior para a compreensão desse conhecimento nativo, que rejeita os mitos neoliberais da exploração sustentável e do individualismo como base da sociedade. Os mesmos mitos que estão sendo expostos agora pela pandemia de Covid-19. 
“O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou de extinção dos sentidos de nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar nossa demanda”, escreveu o líder indígena Ailton Krenak, em “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” (Companhia das Letras), ampliando o coro ao xamã Vernon Foster.
Para Krenak, o consumismo desenfreado substitui a experiência de viver em uma terra cheia de sentido. “Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor?”, questiona. “A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus objetivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.” 
Ver as imagensO cacique Raoni Metuktire fala com jornalistas durante encontro em fevereiro de 2020 (SERGIO LIMA/AFP via Getty Images)

Mãe não se negocia

Para os representantes indígenas, é exatamente esse vínculo com a “memória ancestral” que garante aos povos nativos uma consciência plena de preservação, por exemplo, num país que queima seu patrimônio natural e se habitua a recordes de desmatamento — em janeiro, só a Amazônia registrou um aumento de 108% no alerta de desmatamento, comparado ao mesmo mês do ano anterior, a maior porcentagem desde 2016, quando o índice passou a ser medido.
Segundo Sônia Guajajara (a primeira mulher indígena do Brasil a concorrer à vice-presidência da República, na chapa de Guilherme Boulos, do PSOL, em 2018), é comum ver, por exemplo, pessoas não-indígenas comprarem terras como investimento para vender depois de um tempo. Um ato impensável para os Guajajara, etnia que vive na região do Maranhão. 


Yahoo Notícias

Nenhum comentário:

Postar um comentário