terça-feira, 10 de março de 2020

Putin abre o jogo e defende mudança para tentar ficar no poder até 2036

MUNDO

À frente da Rússia há 20 anos, presidente faz teatro sobre proposta, que precisa de aval legal e popular

O presidente Vladimir Putin faz discurso ante a Duma, a Câmara baixa do Parlamento russo - Alexei Nikolski/AFP

Com isso, Putin, 67 anos e 20 de governo na prática, estaria liberado para disputar novamente a Presidência em 2024 e, caso eleito para um novo mandato de seis anos, em 2030. Se tiver saúde e apoio popular para tanto, o líder só sairá do governo no começo de 2036, quando terá 83 anos."Em princípio, essa opção seria possível, mas com uma condição: de que a Corte Constitucional dê um veredito de que essa emenda não contradiz a Constituição", disse, em discurso no Parlamento transmitido pela TV.​

A presença de Putin na Duma, algo raro, já indicava que o jogo estava jogado.Mais cedo, a deputada Valentina Terechkova, famosa por ter sido a primeira mulher a voar no espaço, havia sido escolhida para apresentar uma proposta dupla: o fim do limite à reeleição ou, caso isso não fosse possível por decisão posterior da corte, a ideia de zerar tudo com a reforma constitucional que havia sido apresentada por Putin em janeiro.Isso permitiu ao líder russo aplicar o verniz legalista à discussão. Afirmou no discurso ser contra a ideia de reeleição ilimitada, como já havia dito em diversas ocasiões anteriores, nas quais disse ter ojeriza à manutenção eterna no poder ao estilo dos líderes soviéticos.Neste ponto, voltou atrás, com o que opositores apontarão como um toque nada sutil de cinismo. “Eu não vou esconder que estava errado. Foi um pronunciamento incorreto porque não havia eleições na União Soviética", disse, com aparente desassombro. Também citou os quatro mandatos de Franklin Delano Roosevelt à frente dos EUA.Na prática, a permanência no poder foi exatamente o que ele visou garantir. 

Na semana passada, o presidente já havia dito em entrevista que "adorava o trabalho" e, no discurso desta terça, afirmou que a possibilidade de viabilizar sua candidatura numa eleição "aberta e concorrida" seria útil para a estabilidade da Rússia. "Já tivemos revoluções suficientes", afirmou.Logo após a fala, o pacote de emendas à Constituição foi aprovado pela Duma, de onde segue para duas votações no Conselho da Federação, equivalente ao Senado —meras formalidades.Tudo isso terá de ser aprovado em um referendo marcado para 22 de abril. Putin também descartou antecipar as eleições para a Duma previstas para setembro de 2021.A manobra putinista começou em 15 de janeiro, quando ele apresentou de forma surpreendente a ideia de mudar a Constituição e reformou o governo, retirando o antigo aliado Dmitri Medvedev do posto de premiê.

Ela já sugeria formas de ele ficar no poder: reforçar o chamado Conselho de Estado, uma entidade hoje sem poderes executivos, e dar mais poderes ao primeiro-ministro e ao Parlamento. Ironicamente, a proposta dizia se destinar a limitar a dois mandatos, ao estilo americano, a presença da mesma pessoa na Presidência russa.As especulações começaram. A teoria mais aceita era a de que Putin buscaria uma união com a vizinha Belarus para se transformar numa espécie de superpresidente, mas o líder local, Aleksandr Lukachenko, resistiu à ideia e a denunciou abertamente.Desde janeiro, Moscou fechou as torneiras do petróleo subsidiado ao aliado rebelde.Já a opção parlamentarista foi descartada por Putin em diversas manifestações desde então. Leitor ávido da história russa, ele segue os conselhos do famoso premiê czarista Piotr Stolipin, para quem o maior país do mundo só seria funcional com um autocrata forte.Agora, o cenário se aclara. 

Há, naturalmente, um problema à frente para Putin: fazer aprovar no plebiscito as mudanças.Críticos ocidentais costumam apontar fraudes como o principal motivo de o presidente estar no poder, mas isso não corresponde à realidade —o que não quer dizer que irregularidades não ocorram.Putin logrou, com seu sucesso econômico relativo e com a efetiva melhoria da vida dos russos, ossificar as estruturas políticas do país. Virou um nome de comando por inércia e falta de viabilidade eleitoral da oposição, que obteve algumas vitórias simbólicas de todo modo.Mas não é imune: enfrentou graves protestos em 2012 e em 2017, com a mobilização via rede social de milhares de jovens que reverberaram por 2018 e 2019.É incerto se a tentativa de abrir o caminho para eternizar-se no poder irá despertar grande reação nas ruas. 

Putin tem, segundo as pesquisas mais recentes, de 65% a 70% de aprovação. Já teve perto de 90%, no auge de sua popularidade, após a anexação da Crimeia em 2014, mas o índice ainda é confortável.O Kremlin é extremamente sensível a variações no índice, que sofreu baixas com a impopularidade da reforma da Previdência local de 2018.As dificuldades que podem vir da guerra pelo preço do petróleo com a Arábia Saudita, somada à epidemia do novo coronavírus, sugerem um debate complexo para o plebiscito —mesmo sua realização com a sugestão de que grandes cidades russas possam entrar em quarentena é duvidosa.Já havia sinais de alerta em sondagem feita em janeiro pelo centro independente Levada, que mostrou 27% dos russos desejando Putin no poder após o fim do atual mandato, ante 32% que o querem fora dele.Analistas veem no cenário um caldo fértil para protestos. O líder oposicionista Alexei Navalni, que organizou protestos a partir de 2017, publicou no Twitter: "Presidente para o resto da vida".

fonte: Folha de S. Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário