Cidade na China é governada por empresa
Em Huaxi, os 60 mil habitantes são acionistas de companhia de mesmo nome e têm US$ 150 mil no banco
A cidade mais socialista da China é também a mais capitalista. Ou será o contrário? A cinco horas de trem-bala (mais 35 minutos de ônibus) de Pequim, Huaxi tornou-se célebre por ser reconhecida como a mais rica do país. Não tem pobres nem desemprego. Os seus 60 mil habitantes possuem pelo menos US$ 150 mil depositados no banco, casa, contas de luz e gás encanado pagas, ajuda para os gastos com educação e saúde (na China, diferentemente do Brasil, colégios e hospitais públicos não são gratuitos) e até uma verba para refeições. De quebra, ainda recebem gordos bônus sobre as ações que detêm do Grupo Huaxi, conglomerado do qual são os donos. Ao GLOBO, o prefeito Wu Xieen conta que a bonança e tantas regalias se explicam por um sistema de administração bem diferente dos modelos tradicionais, o que faz dele mais do que um prefeito. Isso porque acumula a função de diretor executivo do grupo.
A empresa surgiu em 1985, quase 15 anos depois de seu pai fundar a cidade a partir de 50 milhões de yuans que lhe foram oferecidos como propina. Em vez de embolsá-los — como milhares de corruptos que têm sido identificados no país até hoje —, usou o dinheiro para criar a cidade a partir de 20 vilas rurais reunidas em uma só, desenvolver a agricultura, acabando com a fome que persistia à época, e abrir a companhia, responsável, em boa medida, pelos recursos em caixa e a diversidade econômica local. Em 2007, Huaxi teve seu primeiro lucro líquido: dois bilhões de yuans (algo próximo de R$ 997 milhões) em linguagem empresarial. Trata-se de um superávit (diferença entre receitas e despesas), já descontados os milhões de yuans gastos em subsídios variados às famílias, no jargão da administração pública.
— Na prática, a administração da vila é separada da empresa. Temos o melhor do socialismo e do capitalismo. Para a construção e o desenvolvimento, usamos os ideais do socialismo. Para a parte econômica, as regras de mercado. O socialismo tem o problema de sempre ter promovido tudo igual. E o capitalismo, o trabalho só para si e não para o público — afirma o prefeito, em uma entrevista de quase duas horas, numa sala de reuniões do melhor hotel da cidade, no último andar do prédio, onde está exposto o touro que é o símbolo de Huaxi, feito com uma tonelada de ouro e outras duas de cobre.
Salários pagos por conglomerado
O grupo é dono do luxuoso hotel cinco estrelas Long Wish (a oitava torre mais alta da China), onde aconteceu a entrevista, tem o monopólio do setor de construção e investimentos no exterior, entre eles uma parceira numa fundação científica nos Estados Unidos. Do alto, veem-se as longas fileiras de casas luxuosas construídas para a população. Em geral, imóveis de dois andares, em ruas arborizadas, com cerca de 500 metros quadrados, traços bem ocidentais e até piscina. Trata-se de uma vida confortável, acima da média do resto do país. São todos “funcionários” dessa grande empresa, que opera sobre as regras capitalistas, de mercado. Ganha mais quem trabalha mais.
— Ninguém quer trabalhar menos, porque se sentirá envergonhado diante dos outros — garante Wu Xieen, que também é um influente membro do Partido Comunista chinês, eleito deputado em 2012 e 2017.
Os salários são pagos pelo conglomerado, que tem negócios em setores variados da economia e ações cotadas na Bolsa de Valores de Shenzhen. O prefeito enumera os vários projetos internacionais do grupo, entre plataformas de petróleo no Sudeste Asiático, cooperação agrícola com o Japão e até mineração na África. Diz-se interessado pelo Brasil pela relevância do país no grupo do Brics (formado ainda por Rússia, Índia, China e África do Sul), mas se queixa da falta de interação entre empresários.
Sem regalias para quem é de fora
Quem nasce em Huaxi é acionista do grupo (a família do prefeito detém 0,43% do capital total), recebe bônus e pode reinvestir seus papéis. As casas são vendidas aos cidadãos locais pelo preço de custo. Só compra pelo valor de mercado quem não é dali. E há bastante gente nas imediações que tenta tirar uma casquinha dos ares abastados, prestando serviços para a companhia. Vêm de vilarejos próximos com o sonho de ter acesso ao mesmo que os moradores de Huaxi. Mas não vão ter, garante o prefeito.
Quem sai de lá, ou abre a sua própria empresa, perde os benefícios. A ideia é garantir o bem-estar de todos e não permitir que uns acumulem muito mais do que outros. Na entrada da cidade, o Porsche cor de abóbora confirma que o padrão de vida local é alto. Há cinco anos, Huaxi atingiu a meta de renda per capita mínima estipulada pelo governo para ano de 2020.
O bem-estar também se reflete na ostentação de símbolos de gosto duvidoso, considerados artificiais por muitos chineses. O parque da cidade, além de um imenso lago com uma longa ponte (na verdade, uma exposição de vários estilos de pontes chinesas), tem uma réplica do Arco do Triunfo e da ópera de Sidney. Há ainda uma cópia mais modesta da Grande Muralha da China, que não passa por ali originalmente, e da Praça da Paz Celestial de Pequim.
O status exato de Huaxi é de vila-cidade, uma coisa rara para o país. É chamada assim por ter todas as facilidades de uma cidade, sem sê-lo tecnicamente (tem dimensões e população modestas para padrões nacionais). Ninguém precisa sair dali para fazer compras ou ir ao cinema.
— Moro aqui há 17 anos, mas, como não nasci aqui, não tenho os direitos de quem é daqui de verdade. Tenho um bom emprego como motorista. Trouxe para cá minha família e não pretendo sair — disse um motorista da cidade.
No entorno, pobreza
Pouco antes da entrada da vila, prédios maltratados, que, de tão pequenos, obrigam os moradores a criar galinhas e patos e a improvisar seus canis no outro lado da rua, na beira do rio — com vista para as belas casas dos moradores de Huaxi — mostram as persistentes desigualdades para além da bolha de conforto criada nesta área rural do país. O prédio caindo aos pedaços abriga alguns funcionários do hotel de Huaxi, comenta um transeunte.
Huaxi é motivo de interesse não só de chineses como de estrangeiros. Semana passada, desembarcou lá uma delegação de Moçambique. E também virou point de turistas nacionais. Eles querem entender a experiência de sucesso que Huaxi tem ostentado até agora. O prefeito afirma que se trata de um projeto de longo prazo, com árvores plantadas para viver mais de 100 anos, assim como a jovem vila de apenas 46 anos. Se em 1971 tinha pouco menos de um quilômetro quadrado e uma população de 600 pessoas, hoje tem 35 quilômetros quadrados e 60 mil habitantes.
— Vi muitas cidades que tiveram o seu boom, despontaram, depois decaíram. Estamos falando aqui de um projeto de longo prazo — destaca Wu Xieen, no comando da administração desde 2003, depois de cinco reeleições (o mandato é de três anos).
Fonte: O Globo
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