A INFINITA FIADEIRA
Uma paciente chamou minha atenção
quando estava sentada sozinha, pois pareceu-me bastante concentrada.
Fiquei curiosa, visto tinha em suas mãos alguns papéis. Ao me
aproximar contou-me que estava conferindo as respostas da prova de
vestibular que havia feito para o curso de direito.
Disse-me que havia uma pequena
história na parte de interpretação de texto e que eu iria gostar.
Ela me ofereceu para ler. Eu li imediatamente e fiquei encantada pela
maestria e percepção do autor moçambicano e biólogo Mia Couto,
escritor de diversos livros entre eles, “O Fio das Miçangas” em
que narra a historieta “A infinita fiadeira”, cujo texto a
paciente me deu a oportunidade de conhecer e que transcrevo a seguir.
“A aranha, aquela aranha, era
tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os
tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não
lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre
inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma
porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos
primavam obras, com belezas de cacimba gotejando, rendas e
rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe
que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha
de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas
distraiçoeiras funções.
Para a mãe-aranha aquilo não
passava de mau senso. Para que tanto labor se depois não se dava a
devida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E
alfaiatava, alfaiatava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio,
entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer
morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
- Não faço teias por instinto.
- Então, faz por quê?
- Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai.
Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita
teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua
seda. Os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:
- Minha filha, quando é que
assentas as patas na parede?
E o pai:
- Já eu me vejo em palpos de
mim...
Em choro múltiplo, a mãe limpou
as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
- Estamos recebendo queixas do
aranhal.
- O que é que dizem, mãe?
- Dizem que isso só pode ser
doença apanhada de outras criaturas.
Até que se decidiram: a jovem
aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele
devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até
virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um
amoroso encontro.
- Vai ver que custa menos que
engolir mosca - disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés
de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada.
Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que
fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a
visitar a sua coleção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria
prova de seu amor.
A família desiludida consultou o
Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime.
Uma aranha assim, com mania de
gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia
fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num
golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já
transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a
imediata identificação. Quem era? O que fazia?
- Faço arte.
- Arte?
E os humanos se entreolharam,
intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que
um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já
se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos
afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em
criar esses pouco rentáveis produtos - chamados de obras de arte -
tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava
bem em que bichos. Aranhas, ao que parece”.
A aranha nos ensina que as artes
substituem o que as palavras não podem exprimir. A forma como a
aranha se relacionava com o mundo era de forma diferente das aranhas
que a criaram e com quem convivia, era de forma sensível,
introspectiva, não devorou seu namorado, mas se apaixonou por ele e
lhe ofereceu uma de suas obras como sinal de amor, fazia sua arte de
forma persistente e única.
Por vezes comportamentos
diferentes são patologizados e recebem diagnósticos que não
definem a aranha. Então é preciso transformar a aranha em outra
coisa e o Deus dos bichos dá sua ajuda, pois é preciso consertar
esse membro que carrega e denuncia a diferença afrontando a todos no
reino dos aracnídeos.
E assim foi feito ela se torna de
outra espécie, a humana. Diante dos humanos continua a revelar sua
essência ao se apresentar dizendo que faz arte, está em suas
entranhas, essa era a sua natureza. Mesmo transformada, revirada,
mexida, ela é o que é, uma artista de si mesma.
Os humanos também não sabiam o
que era arte, até que um idoso se lembrou, atribuindo isso a outra
espécie, os aracnídeos. Ou seja, nem humanos e nem aranhas devem
fazer arte, essa é a advertência, ninguém deve se diferenciar.
Essa história representa muito
de nossa infinita fiação, obstáculos estarão presentes quando
desejarmos algo mais que nossa espécie, quando tentarmos nos
diferenciar.
Ao fazer arte, nos tornamos
arteiros e podemos incomodar os que não sabem mais para que serve a
arte. Os artistas nos lembram, vez por outra, que a arte da vida
precisa ser tecida por nós mesmos, é um trabalho único e
intransferível, enfrentando o que tiver que ser.
Não se iluda que isso seja
fácil, mas valerá a pena, pois de teia em teia constituímos nossas
vidas.
Maria Emília Bottinii
i Psicóloga
da Clínica Ser
Mestre
em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF)
Doutora
em Educação pela Universidade de Brasília (UnB)
Autora
do livro No cinema e na vida: a difícil arte de aprender a morrer
E-mail:
emilia.bottini@gmail.com
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