Quando descobriu, em 2008, que sofria de doença de Crohn - um mal
crônico que ataca o intestino - não foi só o diagnóstico que preocupou o
servidor público Raimundo Gonçalves Moreira, de São Paulo.
Com a descoberta da doença, ele soube que precisaria tomar, a cada dois
meses, cinco doses do medicamento Remicade. Cada ampola do remédio
custa até R$ 5,1 mil. Logo, aos 63 anos, Moreira gastaria R$ 25,5 mil a
cada 60 dias para manter o tratamento, um custo considerado impraticável
por ele. "Se eu tivesse que comprar, teria morrido há muito tempo",
conta.
A vida de Moreira e de muitos outros brasileiros têm sido mantida
graças a um programa do Ministério da Saúde chamado Componente
Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF), que distribui
medicamentos de alto custo - alguns deles ainda mais caros que os de
Moreira.
O Sistema Único de Saúde (SUS) gasta cerca de R$ 7,1 bilhões por ano
para comprar esses remédios. Mas pelo menos uma parte desse valor tem
ido direto para o lixo.
Um relatório inédito da Controladoria-Geral da União (CGU), concluído
em abril, mostra que 11 Estados e o Distrito Federal jogaram remédios
fora em 2014 e 2015. As causas do desperdício, que chega a R$ 16
milhões, foram validade vencida e armazenagem incorreta.
Para se ter uma ideia do tamanho do problema, o valor perdido seria
suficiente para custear o tratamento de Moreira por 104 anos.
Os Estados em que houve descarte foram Amapá, Bahia, Ceará, Distrito
Federal, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do
Norte e Santa Catarina.
Quanto mais escuro o Estado no mapa, maior o desperdício - os Estados
em rosa claro não registraram descarte de medicamentos (Foto: BBC)
Garrafa d'água e embalagem de suco eram guardados em refrigerador dos medicamentos no Amapá (Foto: CGU/Reprodução)
"Chegamos ao ponto de alguns estados não terem sequer um planejamento
para a compra desses medicamentos de alto custo. Quem não tem um
planejamento não consegue nem sequer ver os eventuais problemas que
podem estar acontecendo, como uma fraude ou o aumento na demanda de uma
doença específica", diz Antônio Carlos Bezerra Leonel, auditor da CGU e
hoje secretário federal de Controle Interno.
Leonel, que participou do processo de auditoria, diz ainda que a CGU
está planejando uma nova rodada de auditorias para verificar se os
desvios foram corrigidos. E que o Ministério da Saúde criou uma equipe
responsável por acompanhar os casos mais graves.
"O SUS é federativo, então o ministério não pode impor algo aos Estados
(que são autônomos na gestão), mas acho que a auditoria criou condições
para que haja uma troca de informações mais efetiva (entre a pasta e os
Estados)", afirma.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que a responsabilidade pelo
armazenamento e controle dos prazos de validade é compartilhada entre a
pasta e as secretarias de saúde dos Estados. A compra de medicamentos
para o SUS é divida em três grupos (básico, estratégico e
especializado). Os R$ 7,1 bilhões gastos em 2016 foram para o componente
especializado, que é o dos medicamentos de alto custo.
O ministério não comentou os casos de perda de medicamentos.
Gestão arcaica e fraudulenta
O bancário aposentado Francisco Single, de 57 anos, tem uma doença
pulmonar crônica. Desde que foi diagnosticado, há um ano e meio, ele se
trata com dois medicamentos que lhe custariam cerca de R$ 900 por mês -
um valor alto para um orçamento de classe média.
Single diz que é comum encontrar no posto de São Paulo, onde mora,
pessoas vindas de outras cidades ou mesmo Estados em busca de seus
tratamentos. Elas recorrem à capital paulista por não encontrarem os
medicamentos nas farmácias próximas de suas casas, diz ele.
O programa é um dos mais caros do Ministério da Saúde. Até agora, foram
gastos R$ 3,3 bilhões neste ano. Em 2016, o custo foi de R$ 7,1
bilhões, de acordo com o Ministério da Saúde. O valor está crescendo: em
2015 foram R$ 5,8 bilhões, e em 2014, 4,8 bilhões, segundo a CGU.
Não é incomum encontrar pacientes vindos de outros Estados, diz Francisco Single (Foto: André Shalders/BBC Brasil)
"Havia um descasamento entre o que era investido (pelo Ministério da
Saúde) e o que a sociedade recebia em retorno", diz o auditor Carlos
Leonel. "Neste contexto de ajuste fiscal é preciso melhorar a gestão,
pois provavelmente haverá dificuldades (para suprir a demanda dos
pacientes)", diz ele.
O auditor diz ainda que às vezes são identificados problemas que vão
além da má gestão e do descaso. "São frequentes operações de repressão,
em conjunto com a Polícia Federal e o Ministério Público", lembra
Leonel.
Uma desorganização no estoque ou uma falha de gestão pode ser usada para esconder um esquema fraudulento, por exemplo.
O último exemplo de investigação de corrupção na área da saúde vem de
Alagoas: CGU e Polícia Federal deflagraram em oito de agosto a operação
Correlatos, contra fraudes em licitações da Secretaria de Saúde do
Estado. Dispensa de licitações e falta de planejamento em compras de
materiais ajudaram a criar as condições para que um esquema milionário
de corrupção.
Agentes públicos usavam brechas na lei para dispensar a licitação e
escolher os fornecedores de remédios. No total, R$ 237 milhões foram
gastos assim. Enquanto isso, faltaram insumos básicos na saúde estadual,
como seringas descartáveis.
Especialistas dizem que a solução dos casos de má gestão ou mesmo de
corrupção não solucionariam todos os problemas da saúde pública
brasileira: há também a falta de recursos. O Brasil investe muito menos
que outros países em que existem sistemas universais de saúde, similares
ao SUS.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), enquanto no Brasil
o gasto por pessoa era de cerca de US$ 1,3 mil anuais em 2014, na
França este valor era de US$ 4,5 mil, e de US$ 4,6 mil no Canadá. Em um
cenário de escassez, é ainda mais dramático que os recursos acabem
desperdiçados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário