SERES AMOROSOS
Sou psicóloga há
algum tempo e gosto do que faço, pois sempre é possível aprender
algo com os que cruzam nosso caminho, mesmo que nem sempre seja fácil
ou entendível o que aprendemos e o que ensinamos. Foi num desses
momentos que aprendi que só o amor nos ajuda a enfrentar situações
dolorosas e difíceis.
Assim aconteceu, em uma
tarde de janeiro, ao fazermos uma visita domiciliar a um senhor idoso
cuja esposa encontrava-se doente. Ao chegarmos veio nos receber e
convidou-nos para entrar.
Adentramos e
deparamo-nos com uma situação chocante: sua esposa, magérrima,
acomodada em uma cadeira de rodas ao lado do fogão a lenha que
aquecia a casa, de pijama longo em pleno verão, de pantufas, com
sonda nasal e sem nenhum brilho no olhar. Era um olhar para o nada...
Parecia não nos ver. Cabeça caída para o lado. Há treze anos sua
esposa começou a ter problemas de saúde e há sete que não fala,
não caminha, não se alimenta sozinha. Apenas vegeta presa em seu
corpo, em si mesma. Observo-a e ainda
percebo sua beleza de outrora, seu cabelo loiro e sua mocidade
perdida pelas rugas do tempo, está bem cuidada e suas roupas
asseadas.
Ela desenvolveu a
doença de Alzheimer e as morbidades associadas. Seu companheiro me
explica que no início ela não lembrava de fazer a comida, não
sabia encontrar a vassoura ou sequer lembrava de ter penteado o
cabelo ou feito o almoço. Isso é perder suas referências de vida,
é ir aos poucos desocupando a memória de si, do outro e do entorno;
é estar presente, mas não estar, há uma presença física e uma
ausência psicológica. É ser apenas um pedaço porque o todo já
partiu de si.
Cena triste e dolorosa
se você imaginar o que descrevo. Adoecer não é nada divertido ou
fácil.
Quando o questiono
sobre como tem sido acompanhar sua esposa enferma por tantos anos,
ele relata que já está acostumado e que acorda de duas em duas
horas todas as noites para mudá-la de posição em sua cama, palco
onde viveram o amor da juventude.
Relata que cuida dela
com a ajuda de seu filho solteiro, que gosta de cuidá-la, é sua
tarefa diária, encontrou sentido no sofrimento da esposa.
Perguntei-lhe se não havia pensado em colocá-la em um asilo, que
isto representava uma possibilidade diante do tempo da doença, ele
me olha como se lhe tivesse feito uma pergunta absurda, reage
negativamente e repete que a ama e que esta é sua vida, sua
história.
Falei-lhe que tinha
certeza que ele a amava porque senão não a cuidaria, já teria ido
embora. Disse-lhe que tinha certeza, também, que ela havia sido uma
boa esposa, pois já não havia contato físico íntimo, não tinha
mais seu afeto, não tinha mais o seu sentir, não tinha mais sua
voz, seu abraço, seu beijo... Mas permanecia fisicamente a lhe
lembrar de tudo o quanto viveram.
Escorreram-lhe abundantes lágrimas em sua face
magra e sofrida.
O que sobrou realmente
foi o amor, somente o amor pode tornar visível o cuidado amoroso.
Sem ele ninguém cuida do outro, sobretudo um outro doente e sem
ação, preso em si, todo mequetrefe, mas desesperadamente humano em
sua aparência.
Falei-lhe, olhando em
seus lindos olhos azuis, que ele era um homem admirável, que seus
filhos deveriam ter orgulho dele. Então contou-me de sua longa vida
juntos, de suas lutas, de suas conquistas, do quanto batalharam para
ter a tão sonhada terra uma vez que eram agregados, e que tudo o que
tinham hoje era fruto de muito sofrimento, muito trabalho. Afirma que
ela sempre tinha ajudado muito. Enquanto falava havia muita ternura e
amor em seu olhar, próprios de um ser amoroso. Fico a imaginar o
quanto sua memória é povoada de cenas de suas vidas: casamento,
filhos, beijos, pequenas discussões, ranços que eram amenizados em
momentos de amor, de fazer amor.... Eu me despeço dele dando-lhe um
abraço da vida inteira, aquele que só alguns raros seres tem a
possibilidade de desfrutar e vivenciar.
Ao sair de sua casa,
pensei no quanto precisaríamos ter mais seres amorosos que
transportam o amor para outra dimensão, para além de um corpo
bonito e da beleza física, para além da juventude, para além de si
mesmo centrando-o no outro como cuidado que se torna visível pela
compaixão, pelo zelo, pelo carinho, pela preocupação. Nas palavras
de Leonardo Boff, “o cuidado somente surge
quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo
então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino,
de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua
vida”.
Há uma música dos
Paralamas do Sucesso que diz: “... cuide bem do seu amor seja quem
for”, nesta cena vivida, a música estava viva diante dos meus
olhos. Nossa humanidade tem sede e fome de seres amorosos; seres que
se preocupem com o outro no verdadeiro sentido do importar-se. Parece
que cada vez mais raro estes seres são, fico feliz de ter cruzado o
caminho com um deles. Seriam mais suportáveis os embates da vida se
partilhássemos nossos dias com pessoas que amamos e que nos amam,
mas que nos amam tanto a ponto de nos cuidar mesmo que estejamos
doentes e sem ação. Esses são radicalmente e desesperadamente
seres amorosos a nos ensinar que amar sem esperar nada em troca é
amor-doação.
Maria
Emília Bottinii
i Psicóloga da Clínica
SerMestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF)
Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB)
Autora do livro No cinema e na vida: a difícil arte de aprender a morrer
E-mail: emilia.bottini@gmail.com
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